O conflito de competência entre os entes da federação em tempos de pandemia

A Paradiplomacia brasileira e as "saídas" do nosso amarrado ...

    Desde que em meados de março foi decretado pela União estado de calamidade pública em razão da pandemia de COVID-19, muito tem se visto por parte dos estados e municípios a criação de leis e decretos determinando uma série de medidas que visam conter o aumento da propagação do vírus. Apesar de terem o mesmo objetivo, as medidas adotadas pelos entes federativos - União, Estados e Municípios - parecem deixar a população mais confusa do que segura. Enquanto Estados e Municípios legislam sobre o mesmo assunto, e, como ocorre com frequência, de maneira divergente, a União deixa de criar orientações gerais, ficando a cargo do Poder Judiciário revisar quem pode o que.

    A competência para legislar sobre determinada matéria encontra algumas limitações no próprio texto constitucional, sendo certo que existem matérias de competência privativa (art. 22), comum (art. 23) e concorrente (art. 24) aos entes. O fato de a Constituição autorizar certa liberdade legislativa justifica-se pela adoção do conceito alemão do "federalismo cooperativo". Essa forma de federalismo entende que não deve haver hierarquia entre os entes, podendo, dentro dos limites pré definidos, cada um legislar de forma autônoma sobre as necessidades locais, levando em conta, portanto, as especificidades de cada cidade ou estado. 

    Inclusive, ainda mais especificamente sobre a competência dos municípios a constituição é clara no comando, quando autoriza que os mesmos criem normas sobre assuntos de direito local (art. 30), de forma que amplia-se indiscriminadamente o rol de atribuições. Utilizando-se dessa prerrogativa, os municípios conseguiram até a edição de uma súmula vinculante do STF, que os autoriza a determinar o horário de funcionamento dos estabelecimentos comerciais. Pode parecer pouco, mas se levarmos em consideração que no Brasil há 5.570 municípios, e que cada um pode decidir o que quiser sobre esse assunto, poderemos ter 5.570 "horários comerciais" diferentes.

    Agora, em análise pouco mais restrita ao Estado e ao Município do Rio de Janeiro, e com relação ao estado de calamidade pública, decretado por ambos os entes, conseguimos encontrar uma série de distorções legislativas, que causam dúvida e tremenda insegurança. Após a superação da contradição criada pelo Presidente da República, de que o mesmo teria poder para, parafraseando o próprio, "canetar" e revogar os atos que visam controlar a crise no sistema de saúde, começaram os conflitos internos, entre os atos do Governador e do Prefeito.

    Me refiro agora especificamente a análise de dois decretos do início do mês de junho, um da Prefeitura (Decreto Rio 47.488) e outro do Estado (Decreto 47.112), que causaram alvoroço. O primeiro publicado em 2 de junho informava o plano gradual de reabertura da Cidade, contando com seis fases. Ainda de acordo com o mesmo, os shoppings centers permanecem fechados, salvo os restaurantes que devem, entretanto, operar apenas no sistema delivery.

    Três dias depois, no dia 5 de junho, foi publicado em âmbito estadual o já citado decreto 47.112. No mesmo, podemos encontrar a liberação do funcionamento dos shoppings centers e demais centros comercias, mesmo com horário alternativo e redução no número de pessoas circulando no seu interior. 

    Mas afinal, quem pode determinar o funcionamento dos shoppings? Qual dos decretos deve ser seguido? Esse é apenas um exemplo pontual, mas de grande impacto. 

    Embasando-se na Constituição, o Município alega que possui legitimidade para legislar sobre os assuntos de interesse local, e ressalta que diante da competência concorrente para tratar da saúde, tal determinação - de manter os shopping fechados - é perfeitamente válida, já que visa o controle da pandemia. Partilham desse mesmo entendimento o STF, que no julgamento da Ação Direta de Constitucionalidade nº 6.341 ratificou o texto constitucional no sentido de reafirmar a competência legislativa dos Estados e Municípios, e o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, em diversos julgados. Inclusive, esse último órgão deixou pacificado que se a ordem decretada estiver pautada em evidências científicas, que demonstrem a segurança do ato, e que estejam em consonância com o ordenamento, ela é válida.

    Portanto, o que se tem entendido, é que a norma mais específica deve prevalecer. Ou seja, o Município quando regulamenta acerca da não abertura dos shoppings centers, deixa a entender que por razões médico científicas essa é a melhor medida pra a localidade. Ao contrário, o Governo do Estado, que também pode legislar sobre saúde, e sob o mesmo argumento entende que os shoppings podem abrir, não pode obrigar que seus municípios sigam essa orientação, devido a especificidade de cada um.

    Certo é, todavia, que boa parte da confusão se deu em razão da falta de orientação em nível nacional. A lei federal 13.979/2020 publicada ainda março, confere a liberdade aos entes para legislar conforme suas necessidades, mas peca em estabelecer orientações mais firmes e claras sobre as ações de controle epidemiológico, e sem oferecer devido suporte aos entes. 
     
    Não restam dúvidas quanto ao extenso debate que enfrentaremos daqui para frente com relação ao pacto federativo, e sobre a cooperação, essa que deveria, por princípio, ser afastada das políticas partidárias, tendo como objeto imaculado a boa relação entre entes, e sobretudo entre líderes que prezam acima de tudo o bem da população. Também não deixa margem para questionamentos, que a atuação do Poder Judiciário foi, em geral, essencial para dirimir e esclarecer os conflitos regionais.

    Por fim, é importante dizer que os conflitos de competência estão longe de serem resolvidos, e que novas e importantes dúvidas surgirão. Não se trata de uma observação pessimista, mas realista. Se conseguirmos ao menos entender o que podemos fazer no nosso Município, penso que já foram válidas as palavras acima escritas. 

    

Referências:
Constituição da República Federativa do Brasil - 1988
Curso de direito constitucional / Gilmar Ferreira Mendes, Paulo Gustavo Gonet
Branco. – 13. ed. rev. e atual. – São Paulo : Saraiva Educação, 2018.
ADI 6.341 e 6.343



    

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