A convivência familiar em tempos de quarentena: aspectos gerais


  
        Inovação. Se o primeiro semestre de 2020 tivesse que ser resumido em poucas palavras, inovar seria, certamente, um dos destaques. O ano de 2020 se iniciou marcado pela Pandemia de COVID-19, e o consequente distanciamento social, apontado pela Organização Mundial de Saúde como uma das mais eficazes e importantes formas de prevenção e contenção da transmissão do vírus, tendo em vista seu alto índice de contágio. 

        Com grande parte da população adotando medidas de distanciamento social, e com os Estados apresentando diferentes propostas relativas à prevenção da doença, surge no âmbito jurídico uma gama de novos desafios, diante dos quais magistrados, servidores, advogados e demais operadores do direito buscam por inovações, utilizando-se dos recursos a seu alcance para superar os obstáculos impostos pelo contexto atual e atender às novas demandas advindas deste período tão inesperado e coberto de incertezas.

    Em relação ao direito das famílias, um dos desafios que se apresenta é a convivência familiar de menores cujos pais não coabitam. Em tempos de quarentena, nem sempre os responsáveis conseguem alcançar uma solução amigável que alcance um equilíbrio entre a proteção do menor e a manutenção do de sua convivência com os pais. Nestes casos, cabe ao poder judiciário a análise de cada demanda a fim de aplicar as medidas que melhor atenderão ao interesse da criança e do adolescente.
    
    O presente artigo tem como objetivo abordar aspectos relevantes que devem ser considerados no momento da ponderação entre os direitos fundamentais à saúde, à vida, e à convivência familiar, bem como explorar medidas que visem preservar a relação familiar nos casos em que se entender pela suspensão temporária da convivência física, medida que deve ser aplicada em caráter de exceção.

    A Constituição Federal Brasileira de 1988, em seu artigo 277 trata, dentre outros direitos, do direito à vida e à saúde e do direito à convivência familiar assegurados à criança e ao adolescente, estabelecendo a responsabilidade da família, da sociedade e do Estado de preservá-los, conforme abaixo:

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

    Tais direitos encontram ainda reforço no Estatuto da criança e do adolescente, artigos 4º, 7º e 19.

    Acerca da convivência familiar, Daniella Barbosa Pereira destacou em seu artigo “A convivência familiar: uma função social”[1] , publicado pelo Instituto Brasileiro de Direito de Família, a importância da contribuição de ambos os genitores na constituição psíquica do menor, e em sua inserção na cultura e nas relações interpessoais. 

    Tamanha é a necessidade de se proteger este direito/dever que atos de interferência por parte de um dos genitores que vise dificultar a o relacionamento e convivência do menor com o outro genitor (Alienação parental) estão previstos em lei específica - Lei nº 12.318/2010, e são sujeitos a sanções como inversão da guarda, multa ou mesmo suspensão da autoridade parental.

    Não obstante a inquestionável necessidade de se preservar o direito à convivência familiar, o atual contexto de distanciamento social em razão da pandemia trouxe novos questionamentos acerca da possibilidade excepcional de sua suspensão temporária, tendo em vista a necessidade de se preservar a saúde e a vida de crianças e adolescentes.

    Importante observar, como bem pontuaram Líbera Copetti de Moura e Maici Barboza dos Santos Colombo no livro Coronavirus, Impactos e no direito de família e sucessões [2], que demandas judiciais acerca do tema trazem um conflito entre os direitos constitucionais acima mencionados, cabendo aos magistrados utilizar a ponderação entre os direitos conflitantes, observando o princípio da proporcionalidade, nos termos do art. 489, §2º do Código de Processo Civil, e o princípio do melhor interesse do menor, previsto no art. 100, IV, do Estatuto da Criança e do adolescente.

    A referida ponderação deverá levar em consideração as especificidades de cada caso, sendo avaliado se os riscos da manutenção da convivência superam os prejuízos trazidos por sua suspensão, ainda que temporária, podendo ser observados fatores como:

  • A existência de condições de saúde pré-existentes (como pressão alta, doenças cardíacas, doenças pulmonares, câncer ou diabetes) que caracterizem grupo de risco;

  • A convivência do menor com pessoas que fazem parte do grupo de risco (Menores que residem com idosos ou outras pessoas vulneráveis);

  • A exposição dos genitores ao risco de contaminação (Por exemplo pais que trabalham em serviços considerados essenciais, especialmente em hospitais);

  • O cumprimento pelos genitores de medidas de segurança e higiene indicadas por profissionais de saúde;

  • A possibilidade de deslocamento, considerando medidas restritivas impostas em alguns Estados e Municípios;

    Cabendo aos magistrados observar ainda o caráter excepcionalíssimo da medida, a fim de evitar que a quarentena e a alegação de proteção ao menor sejam utilizadas como justificativa para práticas de alienação parental.

    A advogada Nélida Moreno falou ao site Conjur [3] a respeito de casos similares nos quais foram aplicadas medidas de suspensão provisória da convivência de maneira razoável, e proporcional, conforme abaixo:

    Em decisão proferida pelo juiz Eduardo Gesse, da 2ª Vara de Família e Sucessões de Presidente Prudente (SP) restou decidida a suspensão da convivência paterna pelo prazo de 14 dias (prazo médio de incubação do COVID-19), tendo o magistrado considerado o fato de que o genitor era piloto de avião e teria realizado escalas internacionais, situação que pode favorecer o contágio, bem como o fato da menor residir com um irmão com quadro de bronquite e portanto, pertencente ao grupo de risco. Ademais, o magistrado entendeu que o afastamento do genitor pelo prazo de duas semanas não traria graves prejuízos, sendo preferível manter a cautela em relação à saúde da menor e seus familiares [4].

    Em outro caso a 5ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo também determinou em caráter liminar a suspensão da convivência paterna pelo prazo de 14 dias, tendo em vista que o genitor havia voltado de viagem da Colômbia, país que também conta com casos de contaminação por COVID-19, e que a criança de 2 anos havia sofrido recentemente de doença respiratória [5].

    Observa-se que em ambos os casos os magistrados realizaram uma ponderação entre a necessidade de se preservar a convivência familiar e o zelo pela saúde dos menores, tendo aplicado medidas proporcionais capazes de resguardar a vida sem impactar de forma exacerbada a convivência paterna.

    Por sua vez, Líbera Copetti de Moura e Maici Barboza dos Santos Colombo acrescentam à questão o decisum emanado pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul no qual o magistrado optou por suspender temporariamente o regime de convivência presencial, considerando as determinações de isolamento social e o interesse da coletividade, e adaptá-lo para uma convivência virtual [6].

    Importante destacar na decisão acima que, em que pese tenha sido determinada a suspensão temporária da convivência presencial, o magistrado se preocupou em manter o contato do menor com o genitor ao determinar a continuação da convivência através de meios virtuais.

    Embora a convivência física tenha, de modo geral, uma melhor qualidade do que a virtual - até mesmo pela questão das demonstrações físicas de afeto, com os grandes avanços tecnológicos e os recursos atuais de voz, vídeo e até mesmo de interação é possível se manter próximo e ter um tempo de qualidade na convivência virtual. 

    A utilização da internet como aliada na aproximação de pessoas fisicamente distantes, é uma alternativa inovadora viável e que pode vir a ser uma das soluções aplicáveis aos casos em que se entenda pela necessidade da suspensão temporária da convivência familiar.

    Neste sentido corroborava o Projeto de Lei nº 1.627 de 2020[7], proposto pela Senadora Soraya Thronicke (PSL/MS), e retirado pela autora no mês de maio deste ano, no qual constaram os seguintes dispositivos acerca do tema:

Art. 6º O regime de convivência de crianças e adolescentes, qualquer que seja a modalidade de guarda, poderá ser suspenso temporariamente, de comum acordo entre os pais ou a critério do Juiz, para que sejam cumpridas as determinações emanadas das autoridades públicas impositivas de isolamento social ou quarentena.

§ 1º Na hipótese de que trata o caput, será assegurada a convivência do genitor não guardião ou não residente por meios virtuais. 

§ 2º Durante o período de suspensão das atividades escolares, poderá ser aplicado o mesmo regime previsto paras as férias. 

Art. 7º O direito de visita dos avós idosos ou em condição de vulnerabilidade, ou demais parentes nas mesmas condições, será exercido, durante o período da pandemia, exclusivamente por meios virtuais.

    
    Observa-se que o referido projeto de lei, com redação que contou com a participação de integrantes do IBDFAM, além de determinar a aplicação da convivência virtual a fim de assegurar o direito à convivência familiar do menor nos casos em que não seja possível a manutenção da convivência presencial, também trouxe como sugestão a aplicação do regime de convivência pré estabelecido referente ao período de férias enquanto as atividades escolares permanecerem suspensas.

    Tal medida visou manter a convivência familiar presencial em regime diferenciado, no qual o menor passaria um maior período de tempo com cada um dos pais, a fim de se reduzir a quantidade de deslocamentos do menor e, consequentemente, a possibilidade de contato com o vírus, o que pode ser também uma alternativa eficaz.

    Cumpre destacar que como de costume no direito das famílias, cada caso possui uma série de especificidades a serem consideradas, não havendo uma fórmula exata e única de resolução destes conflitos.

    Neste momento em que nosso país enfrenta tamanha dificuldade espera-se que a solidariedade e compreensão sejam exercidos ainda mais ativamente, devendo os pais agirem com bom senso diante da necessidade de se tomar decisões que visem a preservação de seus filhos. 

    Por fim, espera-se também que, apesar das dificuldades contemporâneas, operadores de direito sigam se reinventando e inovando, a fim de encontrar novas soluções para os problemas que se apresentam.


Referências Bibliográficas:


[1] PEREIRA, Daniella Barbosa. A convivência familiar: uma função social. IBDFAM, 2018. Disponível em: <Uhttp://www.ibdfam.org.br/artigos/1296/A+conviv%C3%AAncia+familiar%3A+uma+fun%C3%A7%C3%A3o+social>. Acesso em: 14/06/2020.

[2] MATOS, Ana Carla H. et al. Coronavírus: Impactos no Direito de Família e Sucessões. São Paulo: Editora Foco. 2020.

[3] ANGELO, Tiago. Sem marco legal para guarda dos filhos na epidemia, pais devem priorizar acordos. Conjur - Consultor Jurídico, 2020. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2020-abr-20/fica-guarda-compartilhada-tempos-coronavirus>. Acesso em: 14/06/2020.

[4] ANGELO, Tiago. Piloto de avião é proibido de ver a filha por conta de risco com coronavírus. Conjur - Consultor Jurídico, 2020. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2020-mar-19/piloto-proibido-ver-filha-conta-risco-coronavirus>. Acesso em: 14/06/2020.

[5] PANDEMIA DO CORONAVÍRUS: OS IMPACTOS EM CASOS DE DIREITO DAS FAMÍLIAS. IBDFAM, 2020. Disponível em: <http://www.ibdfam.org.br/noticias/7188/Pandemia+do+coronav%C3%ADrus%3A+os+impactos+em+casos+de+Direito+das+Fam%C3%ADlias>. Acesso em: 15/06/2020.

[6] MATOS, Ana Carla H. et al. Coronavírus: Impactos no Direito de Família e Sucessões. São Paulo: Editora Foco. 2020

[7] MATO GROSSO DO SUL. Projeto de Lei nº 1.627/2020. Dispõe sobre o Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito de Família e das Sucessões no período da pandemia causada pelo coronavírus SARS-CoV2 (CoVid-19). Disponível em: <https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=8090502&ts=1590512099482&disposition=inline>. Acesso em: 18/06/2020.

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