Superadas as divergências doutrinárias que por tempos rodearam a natureza jurídica das sanções impostas pela nova lei de drogas, em relação à descriminalização ou despenalização do uso, batemos de frente com um problema ainda mais delicado que envolve a definição do fato típico como uso ou tráfico.
Diferentemente
de inúmeros países nos quais o uso de drogas foi liberado e devidamente
regulamentado (desde o cultivo, até o consumidor final, tributado e com
controle de qualidade), apesar do Brasil não ter aderido à descriminalização do
uso/porte, o legislador optou por não apresentar uma quantidade mínima que
servisse de parâmetro (e obviamente não seria o único) para definir se o
sujeito flagrado no porte de drogas estaria na prática de tráfico ou apenas de
transporte para consumo pessoal.
Os
magistrados, detentores do poder discricionário conforme legislação, ficam
encarregados de a partir de alguns critérios, definir a suposta intenção do
indivíduo flagrado. Porém vislumbrando decisões ao entorno do país, nota-se a
gritante divergência na utilização desses critérios de classificação que
transmitem insegurança para os cidadãos, principalmente aos que estão à margem
da sociedade pois naturalmente são os mais prejudicados.
Nesta
linha de entendimento, Guilherme Souza Nucci (2016) aduz que é preciso
operacionalizar uma mudança radical nos chamados pontos-cegos da
legislação antidrogas. “Não se pode mais aguardar que a situação política do
Brasil melhore e/ou a sua economia entre nos trilhos, pois os danos gerados
pela quantidade enorme de pessoas provisoriamente presas, em face do número
gigantesco de processos em andamento e por condenações inadequadas para a
realidade, levarão a um irrecuperável estrago na estrutura jurídico-penal(NUCCI,
2016)”.E continua o autor:
O primeiro fator a ser levado em
conta diz respeito à diferença entre traficante e usuário, algo que a lei atual
tangencia, deixando o critério diversificador em mãos dos operadores do
direito. Preceitua o art. 28, § 2o , da Lei 11.343/2006
o seguinte: “para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz
atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às
condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais,
bem como à conduta e aos antecedentes do agente”. Nem é preciso assinalar não
ser o referido dispositivo aplicado, com efetividade, no cotidiano das prisões
de pessoas que carregam ou manipulam drogas ilícitas. Aliás, torna-se
extremamente fácil constatar o que ora se afirma: basta uma consulta à
jurisprudência brasileira. O pesquisador poderá ler o conteúdo de sentenças e
acórdãos e checar, por si mesmo, a inexistência da exploração desses requisitos
para justificar a prisão preventiva de um indivíduo, portador de drogas,
geralmente considerado traficante. Outro fator curioso, para não
dizer desastroso, é a abissal diferença de visões entre magistrados: para uns,
carregar 2 gramas de maconha é, sem dúvida, tráfico ilícito de drogas; para
outros, por óbvio, é consumo pessoal; para terceiros, cuida-se de insignificância,
logo, atípico. Não é preciso registrar que a primeira ideia é a franca
vencedora na avaliação judicial.
Infelizmente,
na hora de executar a análise social e pessoal do agente, acaba ocorrendo uma seletividade
punitiva, pois o indivíduo menos favorecido
econômica, social ou culturalmente sempre será visto e estigmatizado de forma
diferenciada daquele que possuem condições mais
abastadas, residente geralmente em áreas nobres das grandes cidades.
A
investigação desse ponto deflagra uma série de preocupações quanto à sua
aplicabilidade e efetividade, em razão da quase iminente e cristalina
possibilidade de se acabar atingindo apenas aqueles indivíduos pertencentes a
população mais vulnerável e em risco social: carentes, homens jovens negros
residentes em favelas, subúrbios e periferias metropolitanas. (VILAR
LINS, 2007, p. 251)
A
atenção, no momento de averiguação discricionária destes critérios, quando a
autoridade estiver diante de um sujeito de direitos miseravelmente “suspeito”,
é imperiosa. A análise deverá ser sopesada levando em consideração, sim, a sua
realidade e problemática social, mas não para imputar ainda maior lesão ao
cidadão, fazendo com que a sua condição social sirva não só de mola propulsora
ao encaminhamento ao uso de drogas, bem como seja a própria navalha, apta a lhe
proferir novo golpe. A miserabilidade econômica e social de um indivíduo não
pode se tornar, ao mesmo tempo, o motivo de seu sofrimento diário e o argumento
para concebê-lo como criminoso, sob pena de estar-se a violar a própria
política de prevenção trazida pela Nova Lei de Drogas que resguarda uma
proteção acrescida aos vulneráveis. (VILAR LINS,
2007, p. 252/253)
Como
exemplo de situações desproporcionais, podemos citar o caso do catador seletivo
de lixo encontrado com menos de um grama de maconha e menos de dez gramas de cocaína,
ser condenado por tráfico de drogas e associação ao tráfico, sentenciado a 11
anos e 3 meses de prisão. Tal decisão retrata a forma preconceituosa e
estigmatizada com a qual o sistema de justiça criminal trata o indivíduo preto, pobre e
marginalizado, aplicando penas desproporcionais acompanhando a percepção do senso comum, atribuindo a tal
indivíduo pelo meio e condições em que vive, a visão determinista de que este
estará sempre propenso à atividades ilícitas para obter vantagens financeiras.
Perde-se o foco da conduta objetiva positivada e passa-se a analisar a
subjetividade do indivíduo.
É evidentemente contraditório, observar que este mesmo sistema de justiça criminal atribui “benesses” jurídicas, concedidas aqueles que tem as famosas “costas quentes”, que são pertencentes ao alto escalão da justiça, política ou empresarial, os quais com todas as boas condições e oportunidades proporcionadas pelo poder aquisitivo, escolhem caminhar pelas vias torpes se associando à atividade de tráfico.
Entretanto,
conforme entendimento majoritário e pacificado pelo Supremo Tribunal Federal,
houve de fato a despenalização e não a descriminalização, situação que
condiciona o indivíduo a se tornar reincidente criminal por ser flagrado
portando drogas.
A
reincidência criminal traz diversas consequências para este, como por exemplo
obsta a concessão de uma liberdade provisória ou um regime de cumprimento de
pena mais benéfico, além de necessariamente ser justificativa para aumentar a
pena em um eventual processo futuro.
O
juiz detém em suas mãos o poder discricionário de avaliar os critérios
elencados na letra da lei para que se defina como usuário ou traficante o
cidadão flagrado no porte de drogas. Nota-se que tais parâmetros são um tanto
quanto vagos, principalmente tratando da condição social e pessoal do agente.
Ora, não seria o negro, pobre e residente de áreas de risco nas quais há
tráfico facilmente caracterizado como traficante? Bem como, de que forma
classificar como traficante o jovem de classe média alta, morador de bairro
nobre e em sua grande maioria de pele clara?
Na verdade, esses últimos deveriam ser desfavorecidos e condenados de forma contundente para que servissem de exemplo pedagógico para os demais e que também através destes, fosse demonstrado que no sistema de justiça criminal não há nenhuma distinção de classe e sim, um único tratamento para uma conduta ilícita, independentemente de quem ou de qual classe social este sujeito pertença e que venha a praticá-la.
O
negro, pobre, flagrado em local e condições precárias com uma quantidade mínima
tem sido com frequência classificado como traficante, enquanto o branco de
classe média, ainda que com uma quantidade significativa da droga, será
beneficiado pela classificação de usuário, pois em tese não tem razão para
desenvolver tal atividade criminosa.
Tais critérios, quando mal aplicados trazem consequências nefastas para o corolário de isonomia, pois o sistema de justiça criminal acaba proporcionando uma punição seletiva e reversa da qual a inovação legislativa propõe. Desta forma, o Estado não desenvolve uma política de conscientização e de equidade de oportunidades, e o resultado é a ocorrência de jovens carentes serem cada vez mais empurrados para o fundo do poço, carregando por vezes, por causa de duas gramas de maconha uma condenação por tráfico, cerceando de vez toda e qualquer futura oportunidade de se inserir no mercado de trabalho e obter renda de forma digna e honesta.
Não menos importante, insta frisar que a quantidade mínima de entorpecente seria um importante critério à ser acrescido aos demais, como parâmetro para a definição do fato típico. É assustadora a divergência de decisões em torno do Brasil, das quais pessoas (Leia-se moradores de comunidades e áreas de risco, de baixa renda e em sua grande maioria, negros) são condenadas como traficantes pelo porte de 2 gramas de maconha e outras definidas como meros usuários, portando kilos e kilos da droga (Mais uma vez, ressaltando que em sua grande maioria, indivíduos de classe média alta que justificam a quantidade como estoque caseiro para evitar o risco de subir comunidades diversas vezes para adquirir a droga).
A política repressiva que perdura por todos esses anos está completamente falida. Não se fala mais em guerra às drogas, e sim em uma regulamentação do uso, descriminalização do porte e o devido controle do estado no cultivo, armazenamento e distribuição. A terceira maior população carcerária e o déficit do sistema prisional é reflexo direto de uma incriminação sem parâmetros proporcionada pelo sistema, o qual desrespeita as regras da prisão preventiva e lota as prisões de usuários, como se traficantes fossem, já que o crime de tráfico responsável por cerca de 1/3 dos encarcerados.
O receio de não estarmos preparados para uma descriminalização das drogas não pode se tornar uma barreira impeditiva de uma evolução já vista em diversos países estrangeiros. Não há modo de prever as consequências de tal mudança, porém se não o fizermos, nunca saberemos o real resultado.
Manoel dos Anjos Advogado E-mail: manoel.jus.adv@gmail.com
Meu advogado
ResponderExcluirMuito bom o texto... Infelizmente isso acontece aos monte em nossa sociedade mesmo que a lei não faça essa distinção ela existe . Uma tristeza!
ResponderExcluirConcordo! É preciso descriminalizar e regular!
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