LEI 11.343/2006 - INFLUÊNCIA DO FATOR SOCIAL NA TIPIFICAÇÃO DA CONDUTA

Superadas as divergências doutrinárias que por tempos rodearam a natureza jurídica das sanções impostas pela nova lei de drogas, em relação à descriminalização ou despenalização do uso, batemos de frente com um problema ainda mais delicado que envolve a definição do fato típico como uso ou tráfico.

Diferentemente de inúmeros países nos quais o uso de drogas foi liberado e devidamente regulamentado (desde o cultivo, até o consumidor final, tributado e com controle de qualidade), apesar do Brasil não ter aderido à descriminalização do uso/porte, o legislador optou por não apresentar uma quantidade mínima que servisse de parâmetro (e obviamente não seria o único) para definir se o sujeito flagrado no porte de drogas estaria na prática de tráfico ou apenas de transporte para consumo pessoal.

Os magistrados, detentores do poder discricionário conforme legislação, ficam encarregados de a partir de alguns critérios, definir a suposta intenção do indivíduo flagrado. Porém vislumbrando decisões ao entorno do país, nota-se a gritante divergência na utilização desses critérios de classificação que transmitem insegurança para os cidadãos, principalmente aos que estão à margem da sociedade pois naturalmente são os mais prejudicados.

Nesta linha de entendimento, Guilherme Souza Nucci (2016) aduz que é preciso operacionalizar uma mudança radical nos chamados pontos-cegos da legislação antidrogas. “Não se pode mais aguardar que a situação política do Brasil melhore e/ou a sua economia entre nos trilhos, pois os danos gerados pela quantidade enorme de pessoas provisoriamente presas, em face do número gigantesco de processos em andamento e por condenações inadequadas para a realidade, levarão a um irrecuperável estrago na estrutura jurídico-penal(NUCCI, 2016)”.E continua o autor:

O primeiro fator a ser levado em conta diz respeito à diferença entre traficante e usuário, algo que a lei atual tangencia, deixando o critério diversificador em mãos dos operadores do direito. Preceitua o art. 28, § 2o , da Lei 11.343/2006 o seguinte: “para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente”. Nem é preciso assinalar não ser o referido dispositivo aplicado, com efetividade, no cotidiano das prisões de pessoas que carregam ou manipulam drogas ilícitas. Aliás, torna-se extremamente fácil constatar o que ora se afirma: basta uma consulta à jurisprudência brasileira. O pesquisador poderá ler o conteúdo de sentenças e acórdãos e checar, por si mesmo, a inexistência da exploração desses requisitos para justificar a prisão preventiva de um indivíduo, portador de drogas, geralmente considerado traficante. Outro fator curioso, para não dizer desastroso, é a abissal diferença de visões entre magistrados: para uns, carregar 2 gramas de maconha é, sem dúvida, tráfico ilícito de drogas; para outros, por óbvio, é consumo pessoal; para terceiros, cuida-se de insignificância, logo, atípico. Não é preciso registrar que a primeira ideia é a franca vencedora na avaliação judicial.

 

Infelizmente, na hora de executar a análise social e pessoal do agente, acaba ocorrendo uma seletividade punitiva, pois o indivíduo menos favorecido econômica, social ou culturalmente sempre será visto e estigmatizado de forma diferenciada daquele que possuem condições mais abastadas, residente geralmente em áreas nobres das grandes cidades.

A investigação desse ponto deflagra uma série de preocupações quanto à sua aplicabilidade e efetividade, em razão da quase iminente e cristalina possibilidade de se acabar atingindo apenas aqueles indivíduos pertencentes a população mais vulnerável e em risco social: carentes, homens jovens negros residentes em favelas, subúrbios e periferias metropolitanas. (VILAR LINS, 2007, p. 251)

A atenção, no momento de averiguação discricionária destes critérios, quando a autoridade estiver diante de um sujeito de direitos miseravelmente “suspeito”, é imperiosa. A análise deverá ser sopesada levando em consideração, sim, a sua realidade e problemática social, mas não para imputar ainda maior lesão ao cidadão, fazendo com que a sua condição social sirva não só de mola propulsora ao encaminhamento ao uso de drogas, bem como seja a própria navalha, apta a lhe proferir novo golpe. A miserabilidade econômica e social de um indivíduo não pode se tornar, ao mesmo tempo, o motivo de seu sofrimento diário e o argumento para concebê-lo como criminoso, sob pena de estar-se a violar a própria política de prevenção trazida pela Nova Lei de Drogas que resguarda uma proteção acrescida aos vulneráveis. (VILAR LINS, 2007, p. 252/253)

Como exemplo de situações desproporcionais, podemos citar o caso do catador seletivo de lixo encontrado com menos de um grama de maconha e menos de dez gramas de cocaína, ser condenado por tráfico de drogas e associação ao tráfico, sentenciado a 11 anos e 3 meses de prisão. Tal decisão retrata a forma preconceituosa e estigmatizada com a qual o sistema de justiça criminal  trata o indivíduo preto, pobre e marginalizado, aplicando penas desproporcionais acompanhando a percepção do senso comum, atribuindo a tal indivíduo pelo meio e condições em que vive, a visão determinista de que este estará sempre propenso à atividades ilícitas para obter vantagens financeiras. Perde-se o foco da conduta objetiva positivada e passa-se a analisar a subjetividade do indivíduo.

É evidentemente contraditório, observar que este mesmo sistema de justiça criminal atribui “benesses” jurídicas, concedidas aqueles que tem as famosas “costas quentes”, que são pertencentes ao alto escalão da justiça, política ou empresarial, os quais com todas as boas condições e oportunidades proporcionadas pelo poder aquisitivo, escolhem caminhar pelas vias torpes se associando à atividade de tráfico.

 A Nova lei de drogas é o maior reflexo da mudança nacional na forma de lidar com o usuário, atribuindo ao mesmo um tratamento social visando a conscientização das consequências do uso de entorpecentes, e não mais caracterizando o indivíduo como um criminoso equiparado ao traficante, com penas privativas de liberdade.

Entretanto, conforme entendimento majoritário e pacificado pelo Supremo Tribunal Federal, houve de fato a despenalização e não a descriminalização, situação que condiciona o indivíduo a se tornar reincidente criminal por ser flagrado portando drogas.

A reincidência criminal traz diversas consequências para este, como por exemplo obsta a concessão de uma liberdade provisória ou um regime de cumprimento de pena mais benéfico, além de necessariamente ser justificativa para aumentar a pena em um eventual processo futuro.

O juiz detém em suas mãos o poder discricionário de avaliar os critérios elencados na letra da lei para que se defina como usuário ou traficante o cidadão flagrado no porte de drogas. Nota-se que tais parâmetros são um tanto quanto vagos, principalmente tratando da condição social e pessoal do agente. Ora, não seria o negro, pobre e residente de áreas de risco nas quais há tráfico facilmente caracterizado como traficante? Bem como, de que forma classificar como traficante o jovem de classe média alta, morador de bairro nobre e em sua grande maioria de pele clara?

Na verdade, esses últimos deveriam ser desfavorecidos e condenados de forma contundente para que servissem de exemplo pedagógico para os demais e que também através destes, fosse demonstrado que no sistema de justiça criminal não há nenhuma distinção de classe e sim, um único tratamento para uma conduta ilícita, independentemente de quem ou de qual classe social este sujeito pertença e que venha a praticá-la.

O negro, pobre, flagrado em local e condições precárias com uma quantidade mínima tem sido com frequência classificado como traficante, enquanto o branco de classe média, ainda que com uma quantidade significativa da droga, será beneficiado pela classificação de usuário, pois em tese não tem razão para desenvolver tal atividade criminosa.

Tais critérios, quando mal aplicados trazem consequências nefastas para o corolário de isonomia, pois o sistema de justiça criminal acaba proporcionando uma punição seletiva e reversa da qual a inovação legislativa propõe. Desta forma, o Estado não desenvolve uma política de conscientização e de equidade de oportunidades, e o resultado é a ocorrência de jovens carentes serem cada vez mais empurrados para o fundo do poço, carregando por vezes, por causa de duas gramas de maconha uma condenação por tráfico, cerceando de vez toda e qualquer futura oportunidade de se inserir no mercado de trabalho e obter renda de forma digna e honesta.

Não menos importante, insta frisar que a quantidade mínima de entorpecente seria um importante critério à ser acrescido aos demais, como parâmetro para a definição do fato típico. É assustadora a divergência de decisões em torno do Brasil, das quais pessoas (Leia-se moradores de comunidades e áreas de risco, de baixa renda e em sua grande maioria, negros) são condenadas como traficantes pelo porte de 2 gramas de maconha e outras definidas como meros usuários, portando kilos e kilos da droga (Mais uma vez, ressaltando que em sua grande maioria, indivíduos de classe média alta que justificam a quantidade como estoque caseiro para evitar o risco de subir comunidades diversas vezes para adquirir a droga).

A política repressiva que perdura por todos esses anos está completamente falida. Não se fala mais em guerra às drogas, e sim em uma regulamentação do uso, descriminalização do porte e o devido controle do estado no cultivo, armazenamento e distribuição. A terceira maior população carcerária e o déficit do sistema prisional é reflexo direto de uma incriminação sem parâmetros proporcionada pelo sistema, o qual desrespeita as regras da prisão preventiva e lota as prisões de usuários, como se traficantes fossem, já que o crime de tráfico responsável por cerca de 1/3 dos encarcerados.

O receio de não estarmos preparados para uma descriminalização das drogas não pode se tornar uma barreira impeditiva de uma evolução já vista em diversos países estrangeiros. Não há modo de prever as consequências de tal mudança, porém se não o fizermos, nunca saberemos o real resultado.

 

                                                                                             Manoel dos Anjos                                                                                                                       Advogado                                                                                                                                    E-mail: manoel.jus.adv@gmail.com 


Comentários

  1. Muito bom o texto... Infelizmente isso acontece aos monte em nossa sociedade mesmo que a lei não faça essa distinção ela existe . Uma tristeza!

    ResponderExcluir
  2. Concordo! É preciso descriminalizar e regular!

    ResponderExcluir

Postar um comentário