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Como se não bastasse enfrentar uma pandemia mundial causada por um vírus novo, o Brasil patina nas questões internas. Ligar a TV não mais significa acompanhar notícias e dados sobre o COVID-19, vemos constantemente as atualizações sobre política e políticos, sobre estrutura e desestrutura organizacional dos governos. Chega a ser difícil de acompanhar.
Permeando boa parte dos discursos e atualizações mais recentes, esbarramos na polêmica da propagação de fake news, ou notícias falsas. As ditas fake news ficaram em alta aqui no Brasil a partir de 2018, e foi, querendo ou não, importante alavanca no processo eleitoral. E é justamente essa influência que se tem ouvido falar: afinal, foram as fake news determinantes para a eleição de determinados candidatos, ou foi apenas um meio de fazer com que as pessoas buscassem verificar seu conteúdo, e ficassem mais "inteiradas" no que realmente estava acontecendo?
Do lado contrário do receptor das notícias falsas, encontramos o propagador e criador desses conteúdos. Pautados, basicamente, no argumento da liberdade de expressão, os criadores de conteúdos falsos parecem não enxergar limites, e colocam esse direito constitucionalmente garantido como escudo e justificativa para produzirem e divulgarem informações incorretas. É aqui justamente o ponto sensível, o limiar entre se apoiar na aplicação de um direito, e profanar informações ou conteúdos que gerem confusão.
Ao contrário do que se pensa, o direito a liberdade de expressão não é algo absoluto, e existem limitações legais que induzem ao ensino moral, por assim dizer. Quero dizer que você até pode achar que é livre para falar e expor o que bem entender, mas referir-se a outra pessoa menosprezando-a ou ridicularizando-a por conta da cor de pele, caracteriza racismo, crime inafiançável e imprescritível. Ou ainda, que se você acha que pode usar seu direito constitucional para falar publicamente mal de alguém, ou ameaçar alguém você também comete crime, e será penalmente e/ou civilmente responsabilizado por isso.
Sobre essa limitação, o Ministro do STF Gilmar Mendes² nos ajuda a concluir que
"A liberdade de expressão, portanto, poderá sofrer recuo quando o seu conteúdo puser em risco uma educação democrática, livre de ódios preconceituosos e fundada no superior valor intrínseco de todo ser humano".
Quando pensamos nas formas tradicionais de comunicação, TV, rádio, conversas pessoais, discursos, apresentações, palestras, enfim, fica juridicamente e legalmente mais fácil de enxergar os limites ao direito da liberdade de expressão. Exemplos já pacificados pelo Supremo Tribunal Federal não faltam: i) é constitucional a lei que proíbe o uso de buzinas sonoras nos arredores de hospitais, e isso não implica dizer que a liberdade de expressão política foi reduzida, mas só impede que um 'buzinaço' em forma de protesto ocorra na frente do hospital; ou que ii) é constitucional a marcha da maconha, vez que é forma manifesta de expressão daqueles que desejam a descriminalização da droga, e não implica em apologia do uso indevido da substância.
Mas a sensação da década é "postar", "viralizar", ocupar a internet com todos os tipos de manifestações, ideias e ideais. Campo vasto para a proliferação de notícias falsas. Aliás, a despeito da enxurrada de informação, a Constituição Federal também determina que é direito de todos o acesso à informação (art. 5º, XIV), e tecnicamente só está informado quem se alimenta de notícias verdadeiras, não sendo, portanto, as fake news formas válidas de se manter informado.
Por isso, visando conter a propagação dessas fake news algumas investigações foram iniciadas, além da criação de uma CPMI¹, que tem por objetivo final a elaboração de uma lei contendo as diretrizes para condutas e postagens em redes sociais, além de é claro investigar a interferência dessas notícias no resultado das eleições de 2018. Novamente, o assunto esbarra na querela da liberdade de expressão, e causa alvoroço por todos os lados.
Por mais que seja fácil de entender o prejuízo social trazido pela divulgação das fake news, e a necessidade urgente em regulamentar e banir esses conteúdos, temos de outro lado o risco to também banimento ao acesso às redes sociais. Para melhor entendimento, há dois dias os perfis nas redes sociais administrados pelo 'criador de conteúdo digital' Leonardo Bolsonéas, foram retiradas do ar. Todos. Inclusive, o mesmo já reportou que não consegue criar outra conta, nem com outro nome. Consegue enxergar a sutileza da situação? É tudo, ou nada.
O direito fundamental à liberdade de expressão, tão duramente diminuído e descartado na história do Brasil, foi posto na Constituição de 1988 como um marco democrático, como uma libertação das amarras da ditadura (que aconteceu sim), como maneira de despir-nos do trauma da censura. De forma elástica ele vem se adequando à nossa sociedade, e nossa sociedade vai dando novos sentidos a esse direito tão recente.
A quem, afinal, compete conferir limites? Por razões inequívocas, o Poder Executivo não pode declarar quais conteúdos podem ser compartilhados. Cabe, então, ao Poder Legislativo criar normas que se adequem à realidade. O Poder Legislativo, imbuído na missão, deve utilizar-se da razoabilidade para criar um meio termo entre os direitos discutidos, obviamente colocando em preponderância aquele que mais a sociedade necessita.
A existência das fake news, na minha humilde visão, está longe de chegar ao fim. Mas também faz parte do processo democrático debater sobre elas, ajudar a compartilhar a informação verdadeira, refutar o compartilhamento em massa, educar e moderar discursos e ações e isso, não pode e não deve ter fim.
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¹ No meu canal no YouTube tem um vídeo explicando sobre o que é uma CPI. Confere lá: Fala Direito Comigo
² Curso de direito constitucional / Gilmar Ferreira Mendes, Paulo Gustavo Gonet Branco. – 9. ed. rev. e atual. – São Paulo : Saraiva, 2014.
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