Mudanças à vista na legislação esportiva brasileira. Será?


Um tema passou a dominar os debates em torno da legislação esportiva no pais: a Medida Provisória 984 publicada em edição extra do Diário Oficial no dia 18 de junho. Em meio a pandemia mundial do Coronavirus, que obrigou a interrupção de várias competições esportivas, inclusive o cancelamento dos jogos olímpicos de Tóquio, o Presidente da República, Jair Bolsonaro, editou uma MP que altera o tempo de contrato de trabalho dos atletas e modifica radicalmente o direito de arena.

De acordo com a nova legislação, até o dia 31 de dezembro de 2020, o período de vigência mínima do contrato de trabalho do atleta profissional passa a ser de trinta dias. A mudança altera o caput do art 30 da Lei 9.615, de 1998, conhecida como Lei Pele, que antes determinava que o vínculo laboral de um atleta profissional teria um prazo determinado, não sendo nunca inferior a três meses, e nem superior a cinco anos. A medida se faz necessária diante do cenário de indecisão pelo qual passa o pais com a pandemia, e torna mais flexível a relação trabalhista do atleta profissional durante este período.

Na opinião do professor de direito da Faculdade Luciano Feijão, Rafael Teixeira Ramos, a medida apoia a atividade econômica dos clubes e federações, viabilizando a continuidade das competições desportivas estaduais, bem como prolonga, pelo menos, por mais trinta (30) dias os empregos dos atletas. É norma de aspecto positivo, já que tutela melhor as frágeis economias dos pequenos e médios atores da economia esportiva (clubes, jogadores, federações, terceiros contratantes do espetáculo esportivo).[i]

Mudança desejada e urgente esperada pelos envolvidos no setor, sendo a alteração um ponto de consenso entre aqueles que atuam no mundo dos esportes. Mas, a discussão maior do novo dispositivo legal, que dividiu especialistas do mundo jurídico desportivo e dirigentes se deu em torno do direito de arena, que sofreu uma significativamente mudança com a nova redação do texto legal. Antes, o direito de arena, previsto no caput do art 42, da lei 9615, de 1998, estava assim disposto:

  Art. 42. Pertence às entidades de prática desportiva o direito de arena, consistente na prerrogativa exclusiva de negociar, autorizar ou proibir a captação, a fixação, a emissão, a transmissão, a retransmissão ou a reprodução de imagens, por qualquer meio ou processo, de espetáculo desportivo de que participem. (Redação dada pela Lei nº 12.395, de 2011).   

Com a edição da MP 984, a redação do dispositivo legal passou vigorar com as seguintes alterações:

Art. 42. Pertence à entidade de prática desportiva mandante o direito de arena sobre o espetáculo desportivo, consistente na prerrogativa exclusiva de negociar, autorizar ou proibir a captação, a fixação, a emissão, a transmissão, a retransmissão ou a reprodução de imagens, por qualquer meio ou processo, do espetáculo desportivo.

Como exposto, o direito de arena agora passa a ser do mandante do jogo, que poderá negocia-lo com alguma emissora de televisão, plataforma digital ou até mesmo transmitir o evento esportivo por veículos próprios, como canais dos clubes na internet. Antes, para ocorrer a transmissão das partidas, havia o entendimento da necessidade da anuência das duas equipes presentes na disputa. A medida pegou o mundo do futebol de surpresa. Não pelo mérito, defendido pela maioria dos clubes brasileiros. Mas, pela forma, sem um debate prévio com os envolvidos no setor e por meio da edição de uma MP, que corre o risco de não ser aprovada no Congresso após o prazo de vigência do dispositivo legal previsto na CF/1988.

Além disso, há uma pandemia no pais, que mata mais de mil pessoas por dia, não havendo a urgência, neste momento, de discutir a forma de transmissão dos eventos esportivos. Evidente, que não se pode deixar de mencionar da necessidade de uma atualização da chamada Lei Pele (Lei 9615/98), que é a principal legislação do esporte no pais. Mas, as mudanças prescindem de debates e participação dos agentes envolvidos com o esporte. Neste sentido, tramita no Senado Federal, na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania o Projeto de Lei de número 68 de 2017, que reúne em seu texto todas as legislações que se referem a pratica esportiva no Brasil, chegando a ter mais  de 250 artigos. Dentre os temas tratados na proposta, abaixo, trazemos alguns deles[ii]:

- Positivação de princípios fundamentais do esporte e o Sistema Brasileiro do Esporte;

-  A profissionalização do atleta com adequações da nova reforma trabalhista, como a previsão de que acordos coletivos podem se sobrepor à legislação, além de pontos referentes ao Contrato de Trabalho, Direito de Imagem, Direitos Econômicos e regulamentação de Intermediários;

- Aumento da porcentagem de contribuição para  Incentivos fiscais voltados à fomentação do esporte;

- Equiparação entre clubes de sociedades empresárias e clubes de associações sem fins lucrativos quanto aos benefícios tributários, a fim de estimular a mudança do modelo societário;

- Direitos e responsabilidades dos torcedores, torcidas organizadas e clubes; segurança e conforto nos eventos esportivos; e crimes relacionados aos direitos do torcedor;

 - Adequação do Streaming e sua aplicação quanto ao Direito de Arena;

- A tipificação do crime de corrupção privada no país[iii].

 

Como visto, o projeto de lei proposto é bastante amplo, passando por várias questões importantes para o desenvolvimento do esporte no pais, incluindo discussões em torno de direitos trabalhistas dos atletas e do direito de arena. Desta maneira, muitos especialistas do direito esportivo, e até mesmo dirigentes de clubes de futebol, criticaram a forma como a MP 984 foi concebida. Mario Bittencourt, Presidente do Fluminense, não teceu críticas quanto ao conteúdo do novo dispositivo legal, do qual ele se diz a favor, mas a forma como ele foi concebido, sem debate com os principais interessados na questão, os clubes de futebol, as federações e outros agentes envolvidos no mundo esportivo, e o momento em que isso foi feito, no meio de uma pandemia.

Já o Presidente do Bahia, Guilherme Bellintani, viu de maneira positiva a edição da nova MP. Em uma rede social, ele disse que a medida vai estimular união direta entre os clubes, inclusive para compartilhar plataformas próprias de transmissão. A Medida Provisória 984 foi publicada em meio ao confuso retorno do Campeonato Carioca. O Rio é o primeiro Estado do pais onde uma competição esportiva volta depois de mais de três meses de interrupção, mesmo que a curva de infecção e morte pelo Coronavirus não tenha diminuído. Botafogo e Fluminense foram contrários ao retorno da disputa. Enquanto outros clubes, incluindo Flamengo e Vasco, posicionaram-se a favor da volta dos jogos do estadual.  

E foi no retorno do Carioca que a mudança introduzida pela MP 984 com relação ao direito de arena foi colocada em pratica. A primeira partida entre Bangu e Flamengo, no Maracanã, no dia 18 de junho, não teve transmissão da Rede Globo, detentora exclusiva dos direitos de transmissão da competição. Isso ocorreu porque a emissora não havia fechado contrato com o Flamengo para transmitir os jogos da equipe da Gávea. Mas, a Globo poderia transmitir a partida, caso quisesse, conforme a mudança realizada pela MP 984. O Bangu, mandante da partida, autorizou a emissora carioca a transmitir o confronto:

“O Bangu Atlético clube, na pessoa do presidente do conselho diretor Jorge Varela, não se opõe e autoriza, por parte da detentora dos direitos, a transmissão do jogo Bangu x Flamengo, no Maracanã, nesta quinta-feira, 18 de junho conforme medida provisória 984/2020 editada pelo presidente da República Jair Bolsonaro. Acreditamos que a transmissão contempla os anseios dos torcedores dos dois clubes.”[iv]

           

Porém, em nota, a Globo disse que não iria transmitir a partida:

 

"Sobre a Medida Provisória 984, que alterou a lei Pelé e determinou que os clubes mandantes dos jogos passem a ser os únicos titulares dos direitos de transmissão, a Globo vem esclarecer que a nova legislação, ainda que seja aprovada pelo Congresso Nacional, não modifica contratos já assinados, que são negócios jurídicos perfeitos, protegidos pela Constituição Federal. Por essa razão, a nova Medida Provisória não afeta as competições cujos direitos já foram cedidos pelos clubes, seja para as temporadas atuais ou futuras. A Globo continuará a transmitir regularmente os jogos dos campeonatos que adquiriu, de acordo com os contratos celebrados, e está pronta para tomar medidas legais contra a violação de seus direitos adquiridos”

 Como falamos anteriormente, pela Lei Pele, para a transmissão de um evento esportivo era consenso de que a autorização para a transmissão dependia da anuência das duas equipes envolvidas no evento esportivo. Por isso, com a edição da MP 984, o Flamengo, por não ter chegado a um acordo com a Rede Globo quanto a transmissão de seus jogos pelo campeonato carioca, foi o primeiro clube brasileiro a ser beneficiado pelo dispositivo legal.

Com a bola rolando nos gramados cariocas, iniciou-se uma disputa na justiça entre os agentes envolvidos no estadual por conta das transmissões das partidas. Primeiro foi a Rede Globo que ingressou na justiça contra o Flamengo a fim de impedir o clube carioca de transmitir o jogo contra o Boavista, no dia primeiro de julho. A Globo pedia uma liminar que proibisse a transmissão pelo Flamengo da partida, alegando que a ação feria seus direitos, já que a empresa tinha contrato com outros clubes, e com a Federação e, portanto, detinha  a exclusividade de transmissão da  competição

Além disso, a emissora alegou que a medida é inconstitucional por desvio de sua função legislativa, que no entendimento da Rede Globo, foi editada para beneficiar o Flamengo. Dias antes da edição da MP 984, o Presidente do clube carioca, Rodolfo Landim, esteve em Brasília com o Presidente da República, Jair Bolsonaro, conversando a respeito do retorno do futebol. Além de Landim, também esteve com o Presidente da República na mesma ocasião o Presidente do Vasco, Alexandre Campello.

"Como se passa a demonstrar, a Medida Provisória editada é assustadoramente inconstitucional. Custa a crer que tenha sido editada de forma tão irresponsável. Note-se bem: a discussão sobre a melhor forma de alocar os direitos de transmissão de um evento esportivo é legítima e precisa ser feita. O que não se pode admitir em ordenamentos jurídicos sérios é que isso se dê numa canetada para beneficiar aliados, sem qualquer debate sobre o tema. E muito menos que a nova legislação possa afetar contratos e atos jurídicos perfeitos anteriormente celebrados", trecho da ação movida pela Rede Globo contra o Flamengo.

            A Globo não obteve êxito quanto a liminar, e o Flamengo transmitiu pela FLATV o jogo contra o Boavista em conformidade com a MP 984. Após a transmissão, a emissora carioca reincidiu contrato de maneira unilateral com a Federação de Futebol do Estado do Rio de Janeiro (FERJ), alegando quebra de contrato de exclusividade de transmissão da competição. Diante da atitude da emissora, a Federação entrou na justiça para obrigar a Globo a continuar com as transmissões dos jogos do estadual. Em caráter liminar, a FERJ conseguiu no dia 3 de julho que a Rede Globo tivesse que transmitir a semifinal da Taca Rio, que aconteceu no dia 5 de julho, domingo, entre Botafogo e Fluminense, sob pena do pagamento de uma multa no valor de R$5 milhões de reais.

            E assim foi feito pela emissora, que transmitiu a partida. Mas, no dia seguinte, a Globo ingressou com uma nova ação para não transmitir a final da Taca Rio, entre Fluminense e Flamengo. A mesma juíza que concedeu a liminar para FERJ explicou posteriormente que a decisão da liminar não caberia para as partidas do Flamengo, que não havia fechado contrato com a Globo. Diante do caso, e de acordo com a MP 984, a transmissão da final da Taca Rio ficaria com a equipe mandante da partida. Em sorteio realizado na sede da FERJ, na segunda pela manhã, dia 6, o Fluminense ficou com o mando de campo. O tricolor carioca entrou em contato com a Globo que não viu nenhum impedimento jurídico para a equipe realizar a transmissão por meios próprios.

            Porém, na quarta-feira pela manhã, horas antes da partida final, a Procuradoria de Justiça Desportiva, na figura do procurador-geral André Valentim, protocolou uma medida inominada, contendo um pedido de liminar para que a partida final da Taca Rio, entre Fluminense e Flamengo, bem como a decisão do Campeonato Carioca, caso haja necessidade, tivessem o direito de mando de campo compartilhado, bem como a divisão dos ônus e despesas do evento. Aqui, precisa de uma ressalva porque o propositor da medida cautelar fez o pedido da mesma antes que a equipe mandante da partida, no caso o Fluminense, indicasse que iria realizar a transmissão da partida.

            Após análise do processo cautelar, o Presidente do TJD, Marcelo Juca, indeferiu o requerimento e pediu que todas as partes envolvidas na questão se manifestassem sobre a questão até as 11h da manhã de quarta –feira, dia 8, para que o relator, sorteado para aquele processo, pudesse analisar os autos. Assim o fizeram a FERJ e o Flamengo. O Fluminense não se manifestou no processo. O Vice-Presidente do TJD, Jose Jayme Santoro, sorteado como relator do processo, ao analisar o pedido da procuradoria, juntamente com as manifestações da federação e do time rubro-negro, concedeu liminar para que o mando de campo fosse compartilhado no jogo da final da Taca Rio.

 “A tese lançada pela Procuradoria é absolutamente razoável e merece ser acolhida. Me parece bastante óbvio que a ratio legis da MP 984/2020 foi a de criar um sistema de pesos e medidas onde o mandante é quem detém esse direito, pois na mesma proporção ele será visitante em outros jogos e como o regulamento da competição foi elaborado antes do texto legal, é de entendimento juvenil que não poderia o texto do regulamento prever a regra da MP e, portanto, um jogo único não sofrerá efeitos da compensação que a MP se preocupou. Uma partida única não terá a possibilidade de retorno e por isso, o regulamento se criado dentro da vigência da MP 984/2020, também por razões óbvias iria prever o mando compartilhado em hipóteses como estas e aliás, lanço essa fundamentação também levando em consideração que o Fluminense não refutou nos autos nenhum dos argumentos da procuradoria, o que poderia auxiliar o juízo a formar sua convicção”, disse Santoro.

            Em virtude desta decisão, que foi publicada por volta das 17:15 de quarta-feira, o Flamengo, por meio de uma nota publicada no site oficial do clube, informou  que só exerceria o direito obtido no TJD, caso o imbróglio judicial entre Fluminense e a Rede Globo de Televisão impedisse a transmissão pelas duas instituições[v]. Em seguida, em uma rede social, o Fluminense afirmou que não havia nenhum problema com a Globo em relação a transmissão da partida da final, e afirmou que todos os torcedores poderiam assistir a partida na FluTV.[vi]

.           Faltando menos de uma hora para a partida entre Fluminense e Flamengo, o Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD) derrubou a liminar do TJD que permitia o compartilhamento da transmissão entre as equipes finalistas da Taca Rio:

“De ordem do Dr. Auditor Presidente, Paulo Cesar Salomão Filho, deste Superior Tribunal de Justiça, referente  Medida Inominada sob nº 074/2020 tendo como Requente Fluminense F.C. e Requerido, Auditor Relator do TJD/RJ, Dr. Jose Jayme Santoro , informo que através de despacho foi  DEFERIDO PARCIALMENTE A LIMINAR REQUERIDA, ficando suspenso os efeitos da decisão proferida pelo TJD/RJ,  sendo mantido, o mando de campo, exclusivamente, em favor do Fluminense, conforme estabelecido no regulamento da competição”.[vii]

            Bom, peço desculpas ao leitor se o texto ficou truncado e, por vezes, um pouco confuso. Mas, não poderia ser diferente diante das confusões trazidas por aqueles que deveriam conduzir a competição com mais respeito e dentro das regras estabelecidas. O campeonato carioca chega ao seu final com um ar melancólico... A partida disputada no Maracanã, entre Fluminense e Flamengo, teve como vencedor a equipe tricolor, que se saiu melhor na cobrança dos pênaltis, e também ao longo dos 90 minutos. A equipe do Flamengo, como há muito tempo não se via, não mostrou um futebol aguerrido, bonito de se ver. Falha de Diego Alves no gol do Fluminense. E, mais uma vez, a lei do ex foi implacável! O empate rubro-negro veio da cabeça de Pedro, cria das Laranjeiras.

Aliás, quem assistiu a partida pela Flu TV, notou que o narrador não pronunciava o nome dos jogadores do Flamengo. Característica de uma transmissão não jornalística, que já tinha um lado bem definido. E será que vai ser assim daqui para frente? Será que a MP 984 vai ser aprovada pelo Congresso? Bom, saberemos disso ao final dos 60 dias de vigência da medida, que podem ser prorrogados uma vez mais por igual período. Até lá, vivemos uma pandemia, que parece estar longe de ser controlada aqui no Brasil. Até o fechamento desse texto, mais de 68 mil pessoas morreram em virtude da covid 19. O futebol carioca reflete bem a confusão que vivemos atualmente no pais. Triste, mas é a verdade...



[i] RAMOS, Teixeira Rafael. Analise resumida da Medida Provisoria n. 984 . Disponivel em https://leiemcampo.com.br/analise-resumida-da-medida-provisoria-n-984/. Acesso em 7 de julho de 2020.

[ii] Comentarios acerca da PL n 68/2017: você conhece a nova lei geral do esporte? Disponível https://foothub.com.br/comentarios-acerca-da-pl-n68-2017-voce-conhece-a-nova-lei-geral-do-esporte/ Acesso em 8 de julho

[iii]  Comentarios acerca da PL n 68/2017: você conhece a nova lei geral do esporte? Disponível https://foothub.com.br/comentarios-acerca-da-pl-n68-2017-voce-conhece-a-nova-lei-geral-do-esporte/ Acesso em 8 de julho

 

[vii] https://www.stjd.org.br/noticias/presidente-defere-liminar-do-fluminense 

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