Por dentro da Justiça Desportiva: as funções desempenhadas por auditores e procuradores

 


A Justiça desportiva, considerada uma justiça administrativa, não integra a estrutura jurídica tradicional existente no pais. Por meio dela, busca-se solucionar conflitos relativos a comportamentos e regras de competições esportivas. Neste sentido, a Constituição de 1988 veda ao poder judiciário apreciar questões atinentes a disciplinas e disputas esportivas, enquanto não esgotadas as instâncias da justiça desportiva regulada em lei. 

Art. 217 É dever do Estado fomentar práticas desportivas formais e não formais, como direito de cada um, observados:

(...)

§ 1º O Poder Judiciário só admitirá ações relativas à disciplina e às competições desportivas após esgotarem-se as instâncias da justiça desportiva, regulada em lei.

§ 2º A justiça desportiva terá o prazo máximo de sessenta dias, contados da instauração do processo, para proferir decisão final.

(...)

         Assim, podemos afirmar que a justiça desportiva é uma justiça constitucionalmente garantida, tendo elevada importância  na resolução de temas específicos. Isso porque, as decisões advindas da justiça desportiva estão relacionadas as especificidades das modalidades esportivas de onde se originam os conflitos.

            Cabe ressaltar que o poder judiciário não está totalmente a margem das questões tratadas na justiça desportiva. Como resta claro no parágrafo 1, do art. 217 ,da CRFB /88, está garantido o direito de ação do controle jurisdicional pelo poder judiciário, quando esgotadas as instâncias previstas na justiça desportiva. Porém, neste ponto, existe uma discussão sobre a competência poder judiciário para analisar determinados temas, mesmo após esgotadas as possibilidades no âmbito jurídico desportivo.

            Entende-se que determinadas matérias não são de competência do poder judiciário pelas especificidades que elas apresentam. Além disso, a atuação do poder judiciário vem de encontro a autonomia esportiva, também prevista no artigo 217 da CRFB/88, que tem por objetivo afastar a intervenção do poder público em uma atividade genuinamente privada, que é  uma competição  esportiva.

Art. 217. É dever do Estado fomentar práticas desportivas formais e não formais, como direito de cada um, observados:

        I -  a autonomia das entidades desportivas dirigentes e associações, quanto a sua organização e funcionamento;

(...)

            A lei 9615, de 1998, conhecida como Lei Pelé  e Lei geral do deporto, no artigo 23, também traz expressa a questão da autonomia das entidades esportivas quanto a sua organização e funcionamento, delegando a elas a obrigação de instituírem tribunais de justiças desportivas para a solução de conflitos disciplinares.

Art. 23. Os estatutos ou contratos sociais das entidades de administração do desporto, elaborados de conformidade com esta Lei, deverão obrigatoriamente regulamentar, no mínimo: (Redação dada pela Lei nº 13.155, de 2015)

I - Instituição do Tribunal de Justiça Desportiva, nos termos desta Lei;

(...)  

            Assim, as instâncias da justiça desportivas derivam de normas internas da própria entidade de uma determinada modalidade esportiva, cabendo a ela dar os meios necessários  para a criação e funcionamento do órgão jurídico desportivo. Desta maneira, as matérias ali tratadas, quando esgotadas na justiça desportiva, poderão ser apreciadas pelo poder judiciário por força do parágrafo primeiro, do artigo 2017, da CRFB/ 88.

Um exemplo clássico da apreciação pelo poder judiciário de questão especifica de competições esportiva é o título do Campeonato Brasileiro de 1987. Somente em 2018,  mais de 30 anos depois da disputa, o STF proferiu uma decisão definitiva quanto ao título da competição. A Suprema Corte decidiu que o campeão daquela disputa foi o Sport, e não o Flamengo. Não é razoável que o tempo de resolução de uma matéria referente a uma competição esportiva leve mais de três décadas para ser decidida.

 Até porque, como bem se sabe, os conflitos esportivos requerem uma celeridade que estejam de acordo com o tempo de disputa de uma determinada competição esportiva. E, nesse sentido, as decisões da justiça desportiva devem versar por preservar os resultados obtidos dentro do ambiente de disputa, campo ou quadras.

Não resta dúvida quanto a especificidade da justiça desportiva brasileira, que integra um sistema democrático, promovendo garantias quanto aos direitos fundamentais envolvidos no conflito. Além disso, a justiça desportiva está ligada a entidade desportiva, que tem autonomia para organizar o órgão judicante desportivo, conforme previsto na Lei 9615/98 em seu art. 50.

Art. 50.  A organização, o funcionamento e as atribuições da Justiça Desportiva, limitadas ao processo e julgamento das infrações disciplinares e às competições desportivas, serão definidos nos Códigos de Justiça Desportiva, facultando-se às ligas constituir seus próprios órgãos judicantes desportivos, com atuação restrita às suas competições.    

            Importante destacar que os membros que vão compor o quadro profissional que irá atuar na justiça desportiva serão indicados na forma da lei 9615/98, conforme expresso nos artigos 54 e 55.

Art. 54. O membro do Tribunal de Justiça Desportiva exerce função considerada de relevante interesse público e, sendo servidor público, terá abonadas suas faltas, computando-se como de efetivo exercício a participação nas respectivas sessões.

Art. 55. O Superior Tribunal de Justiça Desportiva e os Tribunais de Justiça Desportiva serão compostos por nove membros, sendo:                  

I - dois Indicados pela entidade de administração do desporto;                      

II - dois Indicados pelas entidades de prática desportiva que participem de competições oficiais da divisão principal;                    

III - dois advogados com notório saber jurídico desportivo, indicados pela Ordem dos Advogados do Brasil;               

IV - 1 (um) representante dos árbitros, indicado pela respectiva entidade de classe;                        

V - 2 (dois) representantes dos atletas, indicados pelas respectivas entidades sindicais.                    

§ 2o O mandato dos membros dos Tribunais de Justiça Desportiva terá duração máxima de quatro anos, permitida apenas uma recondução.                   

§ 3o É vedado aos dirigentes desportivos das entidades de administração e das entidades de prática o exercício de cargo ou função na Justiça Desportiva, exceção feita aos membros dos conselhos deliberativos das entidades de prática desportiva.                    

§ 4o Os membros dos Tribunais de Justiça Desportiva poderão ser bacharéis em Direito ou pessoas de notório saber jurídico, e de conduta ilibada.                  

         Assim, notamos que, mesmo sendo uma justiça privada, a justiça desportiva sofre interferência do poder público, mesmo que limitada,  na medida em que sua composição é  feita a partir de uma forma definida em lei.  Portanto, não  há que se dizer que existe uma forte intervenção do Estado no órgão judicante desportivo. 

            Os membros indicados para a justiça desportiva são chamados de auditores. Em alguns países, os membros são conhecidos como juízes privados, por serem eles os responsáveis pelas decisões que envolvem causas disciplinares. Os auditores exercem um cargo privado de alta relevância pública, e são os responsáveis por solucionar conflitos relativos a questões disciplinares e de competição.

            Além dos auditores, é  preciso destacar o papel dos procuradores da justiça desportiva.  Porém, a Lei Pele (9615/98) é  silente quanto a procuradoria ser um órgão da justiça desportiva, tratando apenas dos membros da justiça desportiva, os auditores.  A atuação dos procuradores da justiça desportiva está prevista no Código Brasileiro de Justiça Desportiva (CBJD), em seu artigo 21.   

Art. 21. A Procuradoria da Justiça Desportiva destina-se a promover a responsabilidade das pessoas naturais ou jurídicas que violarem as disposições deste código, exercida por procuradores nomeados pelo respectivo Tribunal (STJD ou TJD), aos quais compete:
I- oferecer denúncia, nos casos previstos em lei ou neste Código; (Alterado pela Resolução CNE nº 11 de 2006 e Resolução nº 13 de 2006)

II - dar parecer nos processos de competência do órgão judicante aos quais estejam vinculados, conforme atribuição funcional definida em regimento interno; (NR).

 III - formalizar as providências legais e processuais e acompanhá-las em seus trâmites; -(NR).

 IV - requerer vistas dos autos; (Alterado pela Resolução CNE nº 11 de 2006 e Resolução nº 13 de 2006)

 V - interpor recursos nos casos previstos em lei ou neste Código ou propor medidas que visem à preservação dos princípios que regem a Justiça Desportiva; (Incluído pela Resolução CNE nº 11 de 2006 e Resolução CNE nº 13 de 2006)

VI - requerer a instauração de inquérito; (Incluído pela Resolução CNE nº 11 de 2006 e Resolução CNE nº 13 de 2006)

VII - exercer outras atribuições que lhe forem conferidas por lei, por este Código ou regimento interno. (Incluído pela Resolução CNE nº 11 de 2006 e Resolução CNE nº 13 de 2006)

VIII – comunicar imediatamente à Autoridade Brasileira de Controle de Dopagem quando oferecer denúncia, requerer instauração de inquérito e interpor recursos nos casos alusivos à dopagem. (Incluído pela Resolução CNE nº 37 de 2013)

            Cabe aos procuradores da justiça desportiva fiscalizar o cumprimento e a execução das leis desportivas, tendo eles as mesmas prerrogativas, e  mesmas obrigações, estabelecidas aos auditores. Portanto, a procuradoria é  a titular da persecução processual da justiça desportiva. Diferente dos auditores, o Procurador Geral é  escolhido pelos nove membros que integram o tribunal desportivo. A escolha é  feita por meio de uma lista tríplice elaborada pela respectiva entidade do desporto, ao qual o órgão jurídico esta ligado.

 O Procurador Geral exerce o seu mandato pelo mesmo período do presidente do Tribunal, sendo permitida a ele uma recondução ao cargo por igual período, que é  de dois anos.  É da responsabilidade do Procurador Geral a montagem de uma estrutura que o possibilite desenvolver as suas funções na procuradoria. Cabe a ele escolher de maneira discricionária os profissionais que vão compor o quadro de procuradores do Tribunal.

Após escolher os nomes com os quais deseja trabalhar, o procurador geral irá submetê-los ao presidente do Tribunal, que tem a prerrogativa de homologar a lista pretendida. Para ser destituído do cargo de Procurador Geral é preciso se observar o que está previsto no parágrafo 3, do artigo 21, do Código Brasileiro de Justiça Desportiva (CBJD):

Art. 21 (...)   

§ 3º O Procurador-Geral poderá ser destituído de suas funções pelo voto da maioria absoluta do Tribunal Pleno, a partir de manifestação fundamentada e subscrita por pelo menos quatro auditores do Tribunal Pleno.

Pode-se considerar como a medida mais relevante da atuação da procuradoria o oferecimento de denúncias de infrações que transgridam as regras vigentes de uma determinada competição esportiva. Tais denúncias, quando feitas, precisam seguir o rito descrito em lei. Aqui, vamos nos ater a duas formas de oferecimento delas. A primeira é quando o procurador apresenta ao Tribunal infrações que estejam relatadas na sumula, ou relatório arbitral, da competição, considerando que este é um documento que goza de presunção relativa de veracidade. A outra, é quando a denúncia é feito por meio do uso de imagens audiovisuais, que mostram possíveis infrações ocorridas durante uma disputa.

Com relação as denúncias feitas baseadas por analise do vídeo, o Código Brasileiro de Justiça Desportiva, no artigo 65, traz considerações acerca delas.

Art. 65. As provas fotográficas, fonográficas, cinematográficas, de vídeo tape e as imagens fixadas por qualquer meio ou processo eletrônico serão apreciadas com a devida cautela, incumbindo à parte que as quiser produzir o pagamento das despesas com as providências que o órgão judicante determinar. (Redação dada pela Resolução CNE nº 29 de 2009).

 As denúncias utilizando vídeo podem ser feitas quando o arbitro erra na aplicação da norma, e nesse caso também cabe denúncia contra ele, ou quando fatos graves tenham escapado da atenção do arbitro no momento da disputa. Esta é uma situação que pode acontecer quando o juiz não observou uma determinada situação, ou fato, que seja contraria as normas vigentes.  

As denúncias realizadas seguem um tramite, assim como acontece no poder judiciário. A partir delas, instaura-se um procedimento disciplinar, que tem início com uma sessão de instrução e julgamento, na qual serão analisadas provas, depoimentos de eventuais testemunhas, ou mesmo das partes, para, aí sim, haver uma decisão final sobre o conflito. Decisão essa que será proferida pelos auditores que integram uma determinada comissão disciplinar do Tribunal.

A solução dada será de primeira instancia. Sendo então permitido que haja um recurso da parte que se sentir insatisfeita, ou injustiçada, com a decisão. Este recurso também poderá ser feito pela procuradoria, que também tem como a função elaborar pareceres sobre recursos interpostos no pleno do Tribunal em última instância, antes que o órgão profira a decisão final.   

Os profissionais  que compõem um Tribunal de Justiça Desportiva não são remunerados. Eles desempenham suas funções de maneira voluntaria. Tal situação é objeto de muitas críticas, e também de discussão, já que existe um debate para profissionalizar e, consequentemente, remunerar, os profissionais que ali atuam.   

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