Feminismo e Constituição - uma questão de princípios

     Antes que você ache que esse texto é um manifesto feminista, calma. Até poderia ser, mas na verdade o que os próximos e breves parágrafos trarão é basicamente a relação principiológica entre esses dois institutos - sim, chamei "feminismo" e "constituição" de institutos.

    Agora você deve estar com certa preguiça, pensando que vai fazer uma leitura sobre princípios chatos, pouco aplicáveis, cheios de firula que não tem nenhuma relação com a sua vida. Novamente, até poderia ser... Mas acho bem ingênuo da sua parte considerar que sua vida não é regida por princípios. Talvez você possa estar agora escolhendo qual princípio se adequa melhor à sua vida, mas com certeza, você acorda e sai da cama todos os dias porque é um ser principiológico. 

    Há quem diga que o feminismo é uma verdadeira palhaçada, que se trata apenas de um monte de mulher que não tem mais o que fazer, que resolvem queimar os sutiãs em meio à praça pública, andar com os seios à mostra, gritando e criando confusão. Há quem vá mais longe, e realmente se esforça para que as mulheres sejam sempre mantidas em posição submissa, dependentes de todas as formas de um homem. Aqui, não só homens desejam a manutenção dessa situação, mas muitas mulheres também.

    Fato é que nossa sociedade é extremamente complexa e heterogênea. Pensamos diferente, agimos de diferente maneiras, e tá tudo bem. O problema começa mesmo quando eu, mulher, decido que quero fazer o que um homem sempre fez, ou ocupar um lugar que sempre foi ocupado por homens, ou até cortar o cabelo curto  - à la homme. Nesses casos, as complexidades começam a ficar mais incômodas, e acentuam as desigualdades, e ser diferente passa a ser um obstáculo.

    A nossa constituição traz a baila o princípio da igualdade. Existem centenas de estudos, textos, congressos, workshops, vídeos no YouTube e sei lá mais onde, falando sobre "igualdade". Afinal, é sim um conceito subjetivo. Realmente a gente não pode tratar todos de forma igualitária, pois estaríamos supondo que todos têm as mesmas necessidades, partem do mesmo início, objetivam o mesmo fim, e passam pelos mesmos obstáculos, e isso não é verdade.

    Mas concorda comigo que determinadas coisas podem se aproximar ao máximo da igualdade? Aqui a gente já pode começar a fazer um esboço do feminismo. Não é meu objetivo dizer a diferença entre os feminismos - pois sim, são alguns, e caio no risco de generaliza-lo e isso definitivamente também não é bom. De qualquer forma, e de um modo geral, os feminismos desejam que as mulheres sejam tratadas e consideradas como capazes de ser o que elas quiserem ser. Não me venha com "argumentos" prontos dizendo que fisicamente as mulheres são diferentes, blablabla, uma mulher não pode carregar o mesmo peso que um homem, blablabla. Não é disso que estou falando.

    A constituição no artigo 5º diz que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, mas por que ainda vivemos em oposição a isso? E como vivemos?

    Por que raios ainda ganhamos menos em comparação aos homens? Por que precisamos de uma lei que nos assegure um vagão específico nos trens e metrôs? Por que sentimos medo de recorrer ao judiciário quando somos fisicamente/moralmente abusadas? Por que somos agredidas dentro de uma audiência, enquanto vítimas, e ninguém nos socorre? Por que a licença paternidade é tão menor que a da mulher? Por que precisamos ter no código penal a descrição do feminicídio? 

    Não tem como afirmar que somos iguais em direitos e obrigações aos homens. E nem que estamos perto disso.

    Tem uma série no Netflix chamada "Explicando", e um dos episódios explica porque as mulheres ganham menos. Eu recomendo fortemente que assistam, é curtinho e um tapa de luva de pelica. Sem dar spoiler, mas já dando, o episódio conclui que em países que os homens têm o mesmo período de licença paternidade que a mãe, a margem salarial é muito próxima. Foi uma estratégia adotada por países para minimizar a desigualdade salarial entre homens e mulheres, e funcionou. Claro que a medida veio problematizada e não foi simples, nem de uma hora para a outra. Mas o fato é que mudaram a legislação, e o impacto benéfico é percebido.

    Fico pensando se algo assim aqui no Brasil funcionaria. Gosto de pensar que sim, e que um dia mãe e pais terão seus meses em casa, e seus empregos garantidos. Também gosto de pensar que estamos cada vez mais falando sobre isso, chamando atenção para as desigualdades, clamando por espaço, por direitos que façam a constituição fazer sentido pra qualquer leitor.  

    A constituição de 1988, conhecida como constituição cidadã, apesar de incluir belos e necessários princípios, esqueceu de dar-lhes efetividade, de aplicá-los. Sabendo minimamente a história do Brasil, e a relação social do homem e da mulher desde os primórdios da humanidade, a gente pode concluir com total certeza que não foi um esquecimento sem querer, foi proposital. Claro. De todas nas nossas constituições (7), apenas duas tiveram participação feminina na sua elaboração. A constituição de 1934 tinha 214 homens e apenas uma mulher. Depois dessa, só a de 1988 teve mulheres e numa proporção ainda chocante: 559 homens e 26 mulheres.

    Essas 26 mulheres fizeram o tal do "lobby do batom" e eram conhecidas como a bancada feminista - mesmo que não fossem efetivamente feministas. Entre si também tinham suas desigualdades, umas negras, outras (maioria) branca, umas com ensino superior, outras com curso técnico, umas de cidades grandes, outra do interior. Na medida das suas desigualdades, elas apresentaram mais de 3 mil propostas de emenda à constituição, e conseguiram aprovar quase mil. Propostas como a valorização do trabalho das empregadas e empregados domésticos, ou a flexibilização das regras que regiam a dissolução do casamento, foram trazidas à discussão por essas mulheres. Mesmo com uma carga ainda muito conservadora, sem dúvida elas fizeram muito. 
Fonte: Arquivo da Câmara 

    O que eu quero chamar atenção nesse texto, não é necessariamente sobre o feminismo e sobre a constituição. É mais sobre os princípios que os norteiam. Se entendemos o que significa o princípio da igualdade de direito e obrigações, se temos isso escrito na Constituição Federal, não pode ser tão difícil que haja sua aplicação na sociedade. Muitos fatores contribuem para que essa aplicação seja deixada pra depois, ou para nunca, e creio que a o fator mais importante é a falta de representatividade. Mulheres são a minoria em cargos de liderança, são a minoria no legislativo, executivo, e no judiciário. Mulheres negras então... 

    Falar da nossa Constituição é sim falar enormidade de princípios que a regem e que são completamente ignorados no nosso dia a dia. Do que adianta a gente se debruçar e ficar horas falando sobre fundo partidário, sobre leis que são aprovadas e no dia seguinte revogadas, sendo que o básico ainda é propositalmente deixado pra depois? Claro que são assuntos importantes e que devem ser comentados, mas é que pra mim há uma ordem lógica: arruma a casa, e chama a visita. Aplica os princípios, e evolui a partir deles. É fácil? Não, definitivamente não. Mas enquanto chamarmos de impossível, mais impossível vai ficar. 



_________________________
Fontes:
Marcius F. B. de Souza - A PARTICIPAÇÃO DAS MULHERES NA ELABORAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO DE 1988
CAMILLA SILVA GUTIERREZ - OS FEMINISMOS E O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA IGUALDADE NO BRASIL
Lobby do Batom mostrou poder de coesão feminina na Constituição de 1988 - https://arte.estadao.com.br/focas/capitu/materia/lobby-do-batom-mostrou-poder-de-coesao-feminina-na-constituicao-de-1988
A Participação das mulheres na Assembleia Nacional Constituinte de 1987 - https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/legislacao/Constituicoes_Brasileiras/constituicao-cidada/a-constituinte-e-as-mulheres
    

Comentários